Queremos colocar a experiência, o conhecimento e a competência inegável dos médicos ao serviço de políticas de saúde

Danielson Veiga, médico-cirurgião, explica seus planos e projetos como novo Bastonário da Ordem dos Médicos Cabo-verdianos. As prioridades do seu mandato, as novas propostas, o Plano de Cargos, Carreiras e Salários, as injustiças e os novos desafios da classe médica são abordados nesta grande entrevista.

 

Entrevistado por Odair Varela

É o novo Bastonário da OMC. Parabéns pela eleição. Qual é a sua expectativa maior?

Decorridos mais de vinte anos sobre a criação da Ordem dos Médicos Cabo-verdianos (OMC) e perante o novo quadro de desenvolvimento do país, os desa­fios e as exigências atuais são outros e, de certa for­ma, motivadores. A lista que concorreu para dirigir a OMC foi criada a menos de cinco dias da data limite de entrega de candidaturas, mas a desvantagem do tempo foi compensada pelo grande apoio de colegas disponíveis para contribuir. Apresentamos uma can­didatura cujo programa tem várias linhas fortes com o objetivo de motivar e promover a classe médica. A pretensão é melhorar a qualidade da medicina em Cabo Verde, assim como a relação dentro da classe e do médico/paciente e com a sociedade.

E quais são as linhas fortes desse programa?

Os pontos fortes a serem trabalhados durante este mandato relacionam-se com a ética e a dignidade do médico cabo-verdiano. A qualidade da medicina e a biossegurança serão a nossa bandeira e fazem tam­bém parte das nossas preocupações e a OMC pronti­fica-se a ser uma das parceiras do Ministério da Saúde e Segurança Social (MSSS) na elaboração de um pro­grama neste sentido. Ainda no âmbito da qualidade de trabalho e da biossegurança, queremos encetar conversações com o MSSS para definir condutas para a identificação e a gestão de riscos do Síndrome de Burnout (síndrome de esgotamento profissional) e de excesso de trabalho, pois sabemos que tal ocorre e tem claramente impacto negativo no desempenho do médico. Esta direção pretende rever os Estatutos da OMC, a estrutura e os recursos necessários ao desempenho eficaz das suas responsabilidades perante a classe que representa e perante a socie­dade cabo-verdiana. Durante este mandato a união da classe será um recurso para o sucesso. Queremos que os médicos se sintam representados pela OMC e que possam ter oportunidade de manifestar as suas opiniões, constrangimentos, considerando sempre que a OMC representa os médicos cabo-verdianos. Temos noção de que há muitos médicos insatisfeitos. Queremos nos debruçar sobre as razões que levam os médicos a exonerarem-se da função pública, pois também não queremos que haja “fuga de cérebros”. Outro ponto forte do nosso programa é a promo­ção de uma melhor relação com os parceiros, tanto dentro da ordem e da classe, como fora dela, no­meadamente com outras associações profissionais. Queremos melhorar a competência técnica da OMC através dos colégios de especialidade, que devem ser a autoridade técnica no que tange aos temas da sua área de especialização. Estes colégios devem ter mais autonomia e a OMC deve fazer-se representar por esses órgãos nas tomadas de decisão relaciona­das com a medicina, sobretudo quando envolvem o MSSS. Vamos também promover a autonomia dos ór­gãos regionais. Sabemos que as regiões de Barlaven­to e de Sotavento ainda não têm autonomia e todos os assuntos são diretamente resolvidos pela Direção Nacional.

Um dos focos desta equipa relaciona-se com a for­mação. Queremos explorar esta área de forma a ga­rantir formação qualificada, melhorar a cooperação com instituições e organizações médicas estrangei­ras. Pretendemos reformar os estágios profissio­nais dos médicos recém-licenciados em Cabo Verde para que, passado o período de estágio obrigatório, possam exercer a sua missão com responsabilidade e competência. Sabemos que quando um médico é transferido para um centro de saúde remoto ele tem que ser polivalente para conseguir identificar e gerir problemas de várias ordens. Também iremos promo­ver formações, seminários e cursos de atualização médica, reforçar a capacidade de intervenção nas análises e discussões da legislação do interesse do setor da saúde, para além de levantar a problemáti­ ca da sustentabilidade do setor público e privado da saúde em Cabo Verde. Por fim, queremos reforçar a adesão da classe aos princípios que norteiam a criação da OMC. Queremos reforçar o prestígio que os médicos possuem na so­ciedade cabo-verdiana. A Ordem tem que ter esta vertente de ouvir não só os médicos como também a sociedade.

As anteriores direcções da OMC lutaram duramente para conseguir a aprovação do Plano de Cargos, Carreiras e Salários (PCCS). Entende que agora a classe médica está na melhor situação possível ou a sua direção irá abrir novas frentes de luta relativas ao PCCS?

Com alguma pressão sindical, com o apoio dos mé­dicos e da própria OMC cessante conseguiu-se que houvesse alterações. O Sindicato dos Trabalhadores da Administração Pública (SINTAP) ficou com a res­ponsabilidade de apresentar um diploma regulamen­tar, que, no entanto, continua em fase de preparação e socialização com a classe médica. Durante o nosso mandato esta questão será reforçada com o SINTAP e o SINMEDCV (Sindicato Médico) para se avançar com a aprovação deste diploma regulamentar, que depois será entregue ao MSSS. Ainda falta algum consenso relativamente à grelha salarial dos médicos. Também existem algumas preocupações, nomeadamente ao nível dos requisitos necessários para se continuar progredindo na carreira, entre outros.

Em termos de carreira, existem injusti­ças na classe médica? Quais são as suas propostas para fazer face a eventuais ca­sos de injustiça na promoção da carreira médica em Cabo Verde?

O contexto de injustiça baseia-se no modelo de tra­balho do médico cabo-verdiano. Fundamentalmente, a nossa preocupação é compreender como a com­petência técnica é valorizada no processo de promo­ção do médico. Realmente não se deve considerar o tempo de serviço como principal requisito para tal. Fico contente que agora é via concurso e espero que a competência prevaleça como requisito essencial, algo que antes não existia. O reconhecimento da competência do médico deve ter um cariz público. Outra situação que gera também o sentimento de injustiça é a falta de clareza na política de serviço na periferia. Outra preocupação da classe é que a to­mada de decisões na medicina faz-se por vezes com pouca (ou nenhuma) participação de médicos com competência nas áreas em questão. Por outro lado, também tem sido objeto de reclamação constante a forma como o INPS trata os médicos do setor público e os do setor privado. O médico deve honrar os com­promissos com o seu paciente independentemente do local de atuação. Precisamos também analisar a extensão dos subsídios do INPS para outras especia­lidades. Contudo, se o INPS não tem capacidade de fazer este aporte que seja aberta novas oportunida­des concorrenciais ao INPS para maior benefício do utente.

Quando se fala nas estruturas de saúde espalhadas por Cabo Verde e nos equipa­mentos médicos disponíveis, quais são as condições de trabalho da classe?

Consideramos que em termos de equipamentos de saúde, estruturas médicas e tecnologias, Cabo Verde avançou muito. O que nos preocupa é o facto de não aproveitarmos as oportunidades que esses avanços proporcionam, sobretudo a prescrição digital, a tele­medicina, a formação continua à distância e o acesso a publicações internacionais de qualidade. Temos que exigir ao MSSS que assegure uma eficiente gestão dos recursos tecnológicos que tem à sua disposição, pro­curando rapidamente diminuir o grau de inoperância que atualmente se verifica. Se houver uma profunda colaboração entre o MSSS, a OMC, parceiros sociais e agentes económicos do país, tenho a certeza de que haverá algum fundo para esse fim. Também pensa­mos que poderemos rentabilizar mais os recursos se valorizarmos a competência técnica na saúde. Os Colégios de Especialidade devem ter uma representa­ção em cada área de saúde que estiver em discussão no MSSS. Só assim poderemos equiparar a nossa me­dicina àquela que é feita nos países desenvolvidos. Relembramos que grande parte dos médicos fizeram a sua formação em países com competência reconhe­cida. Mas, muitas vezes, no dia-a-dia, estes são trata­dos como se tal não fosse verdade, o que desrespeita e desvaloriza o médico. Apesar de alguns ganhos, a saúde continua a ser subfinanciada. Se olharmos para a nossa posição nos Orçamentos do Estado, o MSSS tem uma parcela mui­to pequena, que não coaduna com os desafios que a medicina atualmente nos apresenta. Isto obviamente condiciona a nossa atuação e, portanto, a qualidade na saúde.

Cabo Verde conheceu um novo figuri­no com o início do Curso de Medicina no país. Qual será o posicionamento da sua direção em relação a esse curso, aos formandos e à formação dos médicos pro­fessores a lecionarem no país?

A OMC deve sempre promover a qualidade da Me­dicina em Cabo Verde, quer nas universidades quer nos Hospitais como também nas delegacias e cen­tros de Saúde. Seremos igualmente exigentes na­quela que é uma das funções mais nobres da OMC: a defesa da qualidade da formação médica. Relativa­mente ao curso de medicina, até agora temos uma impressão positiva dos formandos e dos professo­res da Universidade de Coimbra. O cabo-verdiano é um povo engajado e os formandos estão a mostrar o mesmo engajamento no curso de Medicina, que é bastante exigente. O que nos preocupa por agora é a necessidade de termos um hospital universitário de­vidamente equipado. Tendo em conta que a forma­ção está dividida em duas fases, a primeira em Cabo Verde e a segunda em Portugal, mais propriamente em Coimbra, que dispõe de hospitais universitários, daí que considero que, de forma iminente, não há razões para grandes preocupações. Mas temos que ir construindo o nosso próprio caminho e, portanto, deverá ser traçado um plano para que os hospitais centrais possam ser transformados, a curto prazo, em hospitais universitários. Nem faz sentido que as­sim não seja. Temos apoio de uma universidade reno­mada (Universidade de Coimbra), portanto, só temos que por mãos à obra! A perspetiva é boa, mas exige uma parceria estreita com a tutela e com os hospitais centrais, que, juntos, constituem o tripé que deverá garantir a transformação dos hospitais.

Quais as propostas deste mandato para reforçar o capital humano, nomeadamen­te através da formação de clínicos gerais e especialistas?

Queremos colocar a experiência, o conhecimento e a competência inegável dos médicos ao serviço de políticas de saúde. Reforçando a influência da OMC nas decisões da tutela e na definição das prioridades para a formação. É claro que a OMC não tem capaci­dade e nem autoridade para enviar profissionais para formação, mas podemos ser parceiros do MSSS na definição das prioridades em termos de especialida­de e na política de seleção dos médicos para as for­mações especializadas.

Como se alcançará uma maior valoriza­ção da classe médica em Cabo Verde?

Continuo a insistir que deverá ser através da união porque nós sentimos que ainda não há coesão da classe médica. Neste momento nada é mais impor­tante do que a união da classe. Por isso o lema da nos­sa candidatura foi “Por uma classe unida, renovada e interventiva”. A valorização passa por respeito, dig­nificação do médico e reconhecimento do seu papel único na sociedade. Acreditamos que, ultrapassando algumas situações de injustiça, devolvendo o prestí­gio ao médico, valorizando a sua competência téc­nica estaremos a construir pilares importantes para que se sinta realizado.

De uma forma geral, qual a sua visão so­bre os médicos e a Medicina em Cabo Ver­de em termos regionais e internacionais? Há uma perceção de prestígio ou ainda há um longo caminho a trilhar?

Sem margem para dúvidas, temos médicos qualifi­cados e com competência em Cabo Verde. Contudo, o que nos falta é o reconhecimento institucional. Efetivamente a justiça, a saúde e a educação são os pilares que um país deve ter. Por outro lado, o fato de algumas pessoas irem procurar tratamento no es­trangeiro nos indica que há alguma perda de prestí­gio e confiança no médico. Muitas destas situações nós podemos resolver dentro do país, mas não há to­tal confiança na saúde em Cabo Verde. Por isso temos que garantir qualidade na prestação de cuidados de saúde à população. Isto faz−se garantindo formação de qualidade e tomando decisões políticas assertivas e fazendo um trabalho conjunto com os decisores po­líticos e com o MSSS.

Como pretendem gerar capacidade fi­nanceira para dar satisfação aos pedidos dos médicos para participar em jornadas médicas e nos congressos internacionais?

Tentaremos estabelecer parcerias com organiza­ções médicas sobretudo com a Ordem dos Médicos de Portugal e do Brasil, com a comunidade médica dos países de língua portuguesa. A Ordem pode tam­bém ter uma relação muito estreita com o Ministério da Saúde, envolver a sociedade civil, a classe empre­sarial e as ONG para tentar envolvê-los mais na cau­sa médica e na saúde da população. Como se sabe, o único rendimento que a OMC possui vem das jóias e quotas que os seus associados pagam e a Ordem tem as suas despesas correntes.

Para finalizar, quais os maiores desafios que a classe médica enfrenta em Cabo Verde e suas possíveis soluções?

Volto a insistir que é a questão da união. Acredito que é o maior desafio que estamos a enfrentar, mes­mo já tendo uma Ordem a funcionar e com credibili­dade. Temos de fazer valer as nossas exigências, me­lhorar a nossa carreira e condições de trabalho e con­sequentemente a saúde da população. Nesta nossa missão queremos estar bem acompanhados, não só pelos médicos e pela sociedade cabo-verdiana, mas também pelos nossos parceiros, sobretudo aqueles que estão relacionados com a saúde e que têm capa­cidade de decidir e influenciar positivamente a causa médica. Assim, com certeza que chegaremos longe. Juntos somos mais fortes.

Entrevista publicada inicialmente na Revista da Ordem dos Médicos, III Série Nº 24 de janeiro a junho de 2019